Esperança

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Esperança era o seu nome, mas não se conhecia tradição na família, como era vulgar acontecer. Uma menina que do alto dos seus oito anos, entendia bem demais o que era a vida. Vestia e calçava o que as tias, que moravam no estrangeiro, lhe faziam chegar. Como ela adorava cada vez que chegava a caixa de papel pardo cheia de roupa e de tudo o que a sua mãe não lhe podia comprar. Era, nestes momentos, feliz. Nunca esquecera um vestido de veludo verde, da cor dos seus olhos e da esperança, que vestia vezes sem conta porque sempre que o punha lhe diziam que ficava ainda mais bonita.

Tinha uma vida aparentemente normal. Vivia com os pais e a irmã. Era a mais velha. Cuidava da caçula com um aprumo irrepreensível, tanto, que muitas vezes a mãe lhe dizia que haveria de ser uma boa mãe. Separavam-nas meia-dúzia de anos, mas desde sempre fora esta pequena criatura quem lhe dava o conforto que não tinha, que a preenchia. Era talvez por isto que a protegia como se fosse verdadeiramente sua. E era.

A mãe trabalhava na casa de senhoras, muito, desde que se lembrava de ser gente. Cedo se fez à vida, porque a vida outra alternativa não lhe mostrou. Esperança saía à mãe, com os mesmos traços, olhos tristes e em cor igual. Ambas bonitas de verdade. Quando passavam, quase sempre ouviam que eram a cara uma da outra e sorriam em cumplicidade. A mãe, como todas, encantava a pequena e, por isso, era contemplada de baixo para cima: mulher de porte, pernas altas, corpo esguio e face morena. Os olhos, esses, destacam-se ainda mais, eram grandes, por entre o cabelo castanho-escuro apanhado em trança.

Todos os dias, como todas as crianças, Esperança ia para a escola, mas não sem antes tratar da pequenina, uma vez que a sua mãe partia cedo e chegava tarde, para depois pôr o comer ao lume e voltar a fazer o que tinha feito durante todo o dia. Esperança ajudava a mãe, por vontade própria, com um rigor e aprumo só vistos. E a mãe, em certos dias, emocionava-se reconhecendo que apesar de tudo era uma mulher de sorte; Deus presenteara-a. A cada vez que ia à missa, ajoelhava-se para agradecer este privilégio, o que lhe fazia aumentar a fé que trazia dentro de si e lhe dava ligeireza para aguentar os dias menos bons. Quase todos.

Fosse para onde fosse, estivesse onde estivesse, Esperança nunca se esquecia dos olhos tristes da mãe. Porque os olhos, a imagem da alma, mostravam-na. Na escola era bem comportada, mas nunca exemplar porque os pensamentos levavam-na para longe dali. Muitas vezes, quando era chamada a responder nem sabia o que lhe havia sido perguntado. Era ao som de uma risota geral, que a sua cabeça voltava da lua ou de outro planeta qualquer daí que, algumas vezes, fosse brindada com a palmatória ou com ponteiradas de cana-da-índia tão usada na altura. Nestes momentos pairava o silêncio entre os muitos que enchiam a sala gigante e fria. Não havia lugar a graças e a qualquer momento se virava o feitiço contra o feiticeiro. Quando isto acontecia, a si ou aos outros, Esperança sentia o seu corpo a contrair e quase a desfalecer. Vinham-lhe à memória outros momentos, aqueles em que não queria pensar, mas que não a largavam. Havia dias que sentia um verdadeiro vazio, um nó por dentro, uma dor de alma. Era nestes que chorava baixinho para que ninguém ouvisse, porque era menina de poucas palavras.

O pai, não sendo austero, também não era de mimos. Eram assim os pais. Estava sempre a dizer-lhe que tinha de ajudar a mãe, para aprender a ser uma mulher. Mas não se apercebia que apesar de ver uma menina, Esperança  já não o era, não pelas lides domésticas que voluntariosamente desempenhava, mas porque entendia, como gente grande, o que era a vida.

Naquela altura, também os pais trabalhavam muito, no campo, mas chegando a casa assumiam a altivez e eram servidos mesmo do pouco que houvesse. A taberna, depois do trabalho, era a segunda casa dos homens onde bebiam e se demoravam. A cada vez que ouvia a porta de casa a abrir, Esperança estremecia. Já deveria estar a dormir, mas o sobressalto sobrepunha-se e nestes momentos levanta-se para ver se a sua menina dormia descansada. O seu sono profundo e silencioso contrastava muitas vezes com o tormento da voz alta do pai, quando chegava já sendo outra pessoa. E nesses momentos, Esperança enfiava-se na cama com os lençóis a servirem-lhe de lenço que lhe ensopava as lágrimas. Do seu quarto ouvia a sua mãe, que numa voz apavorada, mas contida, tentava travar a fúria daquele que até não era mau-homem, mas que não podia beber. No dia seguinte, quando a viam sair de casa com as marcas e os olhos ainda mais tristes, sussurravam, mas nada lhe diziam. Ninguém lhe dava uma palavra porque entre marido e mulher não se metia a colher.

Nessas manhãs, Esperança ia para a escola como se nada fosse, embora já todos soubessem a razão de ser dos seus olhos brilhantes, afinal o mundo em que vivia era bem pequeno. Outros havia que passavam pelo mesmo, bem o sabia, mas essas dores não lhe cabiam, pois a sua era já demasiado grande para tão pouco corpo. Apesar da tenra idade, estas noites e dias tristes toldavam-lhe a vida, embora não percebesse a razão de ser. Questionava-se, mas não chegava a conclusão alguma. Queria sempre fazer alguma coisa, mas o medo paralisava-a e a culpa (sem a ter) aumentava-lhe a angústia.

Muitas mais noites e dias se passaram assim. E ali estavam três criaturas que temerosamente aguardavam a vinda daquele, que já transformado, transformava numa aflição a paz que se poderia ter.

Um dia, Esperança encheu-se de coragem e, comovida, disse à mãe que não aguentava mais vê-la assim, triste e reprimida. A mãe não verbalizou uma palavra, apenas a abraçou, sentindo-lhe os soluços no peito e as lágrimas a escorrer. Depois, colocou-lhe as mãos na face e disse à sua menina que o seu nome fora escolhido por si, mal a viu chegar ao mundo. Assim que lha puseram no colo viu nela a esperança de uma vida melhor, porque antes de a ter, já ambas tinham sentido a fúria da mão-pesada. Pensava ela que o seu homem, deparando-se com aqueles olhos cor da esperança, pudesse mudar...

Nessa noite, porque já era inverno e os serões eram ainda maiores para se estar na taberna, Esperança, de vestido de veludo verde, viu a mãe a colocar roupa dentro de um saco, tão frágil quanto elas próprias. Saíram temerosas, fecharam a porta à chave para que ali ficassem trancadas as lágrimas (tantas), a angústia e o tormento pelos quais passaram. Com a mais pequena escarranchada ao colo e uma sacola às costas, seguia, a corricar, os passos largos e nervosos da mãe até ao carro de praça que se encontrava numa ruela pouco iluminada. 
Chegadas ao cais da Capital, lá estava o grande navio que as iria levar às tias, a uma nova vida na terra das oportunidades. Ao vê-lo, gritou: 
- Mãe, chama-se Esperança!




                                                                                  



#2 
Rúbrica "Conto para todos"
by, bloguemadetres

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Comentários

  1. Simplesmente lindo 📖 ♥️adorei minha querida, principalmente o conto da Esperança 🤣😘

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