O SONHO DE ASSUNÇÃO

Num imponente castelo, cercado por muralhas gigantes que quase chegavam ao céu, vivia uma pequena princesa. Tinha pouco mais de uma mão-cheia de anos e todos diziam que parecia filha do Sol. Maria da Assunção de sua graça, em homenagem à Santa Padroeira do seu reino, a Baronia de Alvito.

Tinha cabelos loiros como o sol em dias quentes, tão brilhantes, que quase chegavam a encandear quem muito os observasse. Os olhos eram azuis, translúcidos, grandes, encantadores, porque sorriam à medida da expressão dos seus pequenos lábios carnudos e rosa. Usava vestidos compridos, coloridos e outras vezes escuros, de veludo ou de seda, conforme as estações do ano. Em torno da sua estreita cinturinha havia sempre uma faixa que terminava com um enorme laçarote, apertado e pomposo, feito pela sua aia. Era assim, que naquele tempo se vestiam as princesas.

 

Ainda em tão tenra idade, Maria da Assunção, simplesmente Assunção para os amigos de verdade, já mostrava um gosto imenso por livros. Retirava-os das estantes da biblioteca, pesados, alguns quase do seu tamanho e espalhava-os sobre a sua cama. Já lia, mas o que mais gostava de ver eram as imagens que lhes mostravam que, para além do seu castelo, havia mais mundo e, certamente, outras gentes e crianças com quem gostaria de brincar, pois a sua casa era grande de mais para tão poucos.

Numa manhã de primavera, ainda a luz era pouca a entrar-lhe quarto adentro, Assunção pegou num dos últimos livros que trouxera da biblioteca e que mais a fascinava, o Atlas.

Com as pontinhas dos dedos saltitava de país em país, atravessava fronteiras num ápice e já fazia ideia que léguas e léguas a separavam daqueles territórios. Imaginava como seria a vida das crianças naquelas terras. Terão irmãos? Também viverão num castelo? - Pensava Assunção, que a cada dia que passava, tinha cada vez mais curiosidade em saber o que havia para além das muralhas do seu castelo.

Um dia, quase a chegar a hora de dormir, Júlia –  a sua aia –  de quem gostava como se fosse da família –  entrou nos aposentos como todos os dias fazia, desde sempre. Júlia ajudara-a a nascer. Fora o primeiro colo que a tomara. Sabia-a de cor. Adoravam-se, numa cumplicidade tal que enterneciam tudo e todos, até o rei bravo e sério e a rainha formosa e delicada.

- Júlia, vem ver estes países aqui no mapa - pedia Assunção num tom de voz irresistível.

- Não posso, menina! - respondia-lhe Júlia, tentando dissuadi-la, acrescentando: 

- O sol está a pôr-se e são horas de dormir. Beba o chá com leite para ter sonhos tranquilos e de algodão.

- Vê este; depois prometo-te que durmo, implorava-lhe a pequena princesa.

- Pois bem – assentiu – mostre-me então.

- Vês, Júlia, nós vivemos aqui – e apontava para uma página do livro gigante no qual os seus dedos ainda pareciam mais minúsculos. O nosso país é pequeno, mas este é enoooooorme. E depois estes, que não sendo tão grandes, são igualmente distantes. Gostava tanto de conhecer amigos destes países. E tu, não gostavas, Júlia?

- Oh menina, eu gostava mesmo é que dormisse, que é quase noite. Mas sim, também gostava. Quem sabe um dia não se torna realidade esse seu desejo.

- Por que dizes isso? – levantando-se da cama, empolgada.

- Menina, quando desejamos muito alguma coisa e fazemos por isso, mais tarde ou mais cedo, conseguimos alcançar. Assunção escutava-a atentamente, embevecida com as palavras da sua querida aia que acabou por ceder ao seu desejo: - Vá, menina, então escolha três países, desses longínquos, como diz. Depois enviaremos convites a crianças para que a venham visitar. Vou buscar papel, tinteiro e flores para os fazermos bonitos e cheirosos.

- Sim, Júlia! Que excelente ideia! Ah, e não te esqueças do lacre!

Passaram a noite a escrever e a decorar com pétalas de flores perfumadas os papéis de seda que haveriam de ser levados pelos pombos-correio do castelo até paragens distantes. Ao ver os primeiros raios de sol da manhã e ao ouvir o galo Rococó a anunciar a alvorada, a pequena princesa disse:

- Júlia, vamos colocar os convites nos pombos-correio para que partam bem cedo! E assim foi, para espanto da rainha-mãe que, quando as viu tão cedo a atravessar o pátio do castelo, lhes perguntou:

- Pode saber-se onde vão tão gentis donzelas, logo ao amanhecer?

- Vamos enviar convites para paragens distantes. Quero encher este castelo de crianças!

A rainha-mãe sorriu, ao mesmo tempo que encolhia os ombros num gesto de consentimento e habituação, pois Assunção, desde tenra idade, era uma menina cheia de energia e de ideias… mirabolantes.



Um certo dia, já alto ia o verão, eis que bateram à porta do castelo. Júlia foi ver quem era. Abriu a porta e à sua frente nada viu. Foi, entretanto, que olhou mais para baixo e se deparou com três criaturinhas, em altura muito semelhante à de Assunção e aos quais disse com um ar curioso, mas muito terno:

- Boa tarde, meus queridos, posso ajudar-vos?

- Sim! – ripostaram em coro. Recebemos um convite para vir ao encontro da princesa Maria da Assunção da Silveira, uma menina que se sente só por não ter irmãos com quem brincar e que gostava de conhecer crianças de outros países do mundo. Aqui estamos à sua presença!

Júlia ficou petrificada! Nem queria acreditar. Acorreu ao jardim onde se encontrava Assunção, entre flores e pavões a pupilar, de caudas abertas.

– Menina, menina, não vai acreditar! Eles chegaram! – dizia Júlia com a face rosada de tanto ter corrido até ao jardim.

- Quem, Júlia?

- Os seus amigos, menina!

- Os amigos de paragens longínquas???

Acorreram à entrada do castelo, onde seis olhos muito abertos as esperavam.

Foi uma alegria. Levados a conhecer o castelo e depois de um farto repasto, deram a conhecer as maravilhas dos seus países. Vestiam-se de maneiras diferentes, mas tinham em comum o mundo das crianças, aquele onde reina a alegria, a simplicidade e outras emoções verdadeiras.

Apresentou-se a primeira: Moema – uma índia da Amazónia:

- O meu nome significa “aquela que adoça”, disse. – E assentava-lhe que nem uma luva, pois a sua voz e o seu olhar eram doces como o mel. De pele, olhos e cabelos escuros  e escorridos, Moema trazia no corpo apenas uma tira de tecido a tapar-lhe o baixo-ventre, penas coloridas na cabeça e desenhos tatuados na pele. Nas orelhas pequeninas espreitavam duas penas e alguns colares de missangas ao pescoço que lhe coloriam ainda mais o sorriso, enquanto dizia:

- Vivo numa tribo indígena, junto de um afluente do grande rio Amazonas. As nossas casas são construídas com madeira e palha junto ao rio e são chamadas de ocas – uma palavra de origem Tupi, a nossa língua. Não vamos à escola, mas aprendemos muito em comunidade e com os mais velhos, as pessoas mais respeitadas da aldeia. Para brincarmos, construímos os nossos próprios brinquedos e usamos a canoa para nos deslocarmos. Dançamos, usamos rituais ancestrais e comemos o que a natureza nos dá: bagas, frutos, raízes e peixe do rio. Mas, nem sempre vivemos em paz porque há homens de outros lugares que se querem apoderar da nossa floresta e do nosso rio para destruí-los, o que deixa as tribos muito assustadas e, por vezes, a terem de deixar as suas aldeias.

Apresentou-se o segundo – Amir, o mais alto dos três. Chegava ao castelo de Assunção, vindo de outro lado do mundo.

– Venho da Síria, um país no Médio Oriente. A maioria da população no meu país vive no vale do rio Eufrates e falamos árabe. Juntamo-nos para rezar nas mesquitas ao nosso Deus, Alá, e a nossa religião é o Islamismo.

Vestia um traje até aos pés e comprido de mangas. De face morena, cabelo escuro e solto, parecia ter mais idade. Seguro de si, mas não altivo, era fácil descobrir o seu caráter forte. Vinha apoiado de umas muletas que o amparavam pois perdera parte da perna quando homens maus o atacaram, a si, à sua família e a tantas outras, devastando a sua cidade e o seu país.

Contou que o seu nome tinha dois significados – o príncipe, o comandante, disse, orgulhoso. Sonhava um dia que todos no seu país se conseguissem entender, porque, afinal, todos eram filhos do Profeta. Amir emocionou-se ao falar sobre este assunto e acrescentou:

- Ninguém deveria guerrear! Todos perdem, todos saem magoados e tristes. Por isso, um dia gostaria de ser o comandante da paz no meu país. 

Uns olhos enormes observavam, com muita atenção, as apresentações de Moema e Amir.  Ainda que fosse o último a apresentar-se, não deixou de o fazer bem, como os anteriores. De cabelo crespo, muito curtinho e agarrado à cabeça e pele da cor do café, sorriu antes de dizer qualquer palavra. O seu sorriso rasgado, que lhe mostrava os dentes certinhos e brancos, desarmava qualquer um e dava a ideia de que teria nascido já a sorrir. Eis que começou então: 

- Chamo-me Abdo, que no meu país significa sensível e amável. Vivo num dos países mais quentes do mundo, em África, situado abaixo do deserto do Saara. Chama-se Sudão, palavra originária de dialetos árabes que significa “terra dos homens negros”. No meu país falam-se diferentes línguas, mas a mais usada é o Beja ou Bedawi. Continuou:  - Na minha terra há muitas crianças e pirâmides, principalmente junto ao rio. Também vivemos em tribos diferentes e cada uma fala a sua língua. Somos muitos porque as mães têm muitos filhos; brincamos e cuidamos dos nossos animais. No meu país, o solo é árido, a temperatura é muito alta, há pouca água e também poucas árvores. Por isso, nem sempre temos o que comer e muitas crianças ficam doentes, muito doentes e por vezes... - disse cabisbaixo - não resistem.

Assunção ouvia, apreensiva, os testemunhos dos seus novos amigos, e, em certos momentos chegou até a emocionar-se, pois, ainda que de tenra idade, percebia que havia crianças no mundo que não tinham o mesmo conforto do seu castelo. Ainda assim, eram felizes à sua maneira, porque, afinal, as crianças arranjam sempre maneira de encontrar a felicidade.

Mais tarde, juntaram-se outros à festa no castelo. Eram de todas as cores e partes do mundo, do polo Norte ao Sul, passando pelo Equador. Brincaram tanto, à maneira de uns e de outros, cantaram canções, tocaram tambores e alaúdes, um festim à maneira, com direito a decorações coloridas. Beberam refrescos e comeram pão de trigo estaladiço. Júlia preparara comidas de outras paragens, encontradas nos livros da biblioteca, que deliciaram todos os meninos e meninas que comunicavam entre si, através da língua das crianças – a da alegria, da boa-disposição, da simplicidade e todos se entendiam. E assim, pela noite dentro, no pátio do castelo, sob o olhar de uma lua cheia, intensa, de uma noite quente de verão, ecoavam as risotas, as gargalhadas genuínas e puras, aquelas que só as crianças sabem dar.

Na manhã seguinte, e mais uma vez, ao som do Rococó, Assunção acordou e sentiu o peso do grande livro que ficara no seu leito, a seus pés. Ainda ensonada, ouviu bater à porta dos seus aposentos.

- Bom dia, minha querida! Dormiu bem? Ena! Tantos livros espalhados por aqui, e claro, como sempre, o Atlas

- Bom diaaaa, Júlia! Disse, preguiçando e num tom arrastado, terminando com um bocejo demorado.

- Júlia? - interrogou. Já perdi o estatuto de sua avó, meu amor?

Espantada, olhou para a avó, fitando-a com alguma estranheza.

De repente, levantou-se da sua cama de dossel e, ainda incrédula, assomou-se à janela que abriu de par em par e que dá para a praça, parecendo-lhe ouvir as vozes dos seus amigos. Mas não, a agitação vinha das pessoas da vila. Dos seus amigos, nada.

Ao colocar-se em bicos dos pés, avistou os pavões e a janela principal do castelo, que em tempos fora do quarto de uma princesa.

- Desculpe, avó, sim, avó Júlia… - sorriu envergonhada. É que tive um sonho, um sonho maravilhoso, inesquecível. E a avó fazia parte dele - sorriu com entusiasmo. A avó ficou feliz com o que acabara de ouvir, afinal, até nos sonhos fazia parte da sua vida, fosse de que forma fosse.

- Avó - interpelou-a - sabe que eu gostava de poder brincar com outras crianças? Esta casa é tão grande e está sempre tão vazia… - suspirou. A avó um dia não me disse que quando desejamos muito alguma coisa e fazemos por isso, mais tarde ou mais cedo, conseguimos alcançar?

- Ainda bem que te lembras das minhas palavras, meu amor. Assim é, e assim será sempre. Assunção ficou pensativa e disse para si:

- Ainda esta noite as ouvi…

- A propósito - sussurrando - hoje, a tua mamã vai dar-te uma excelente novidade. E a avó colocou o dedo sobre o nariz e a boca, em sinal de segredo absoluto. Mal sabia ela que, em breve, já teria com quem brincar…

Assunção não ligou muito, pois continuava a pensar no seu sonho, nos seus amigos, nas paragens longínquas, nas crianças que, tal como ela o eram, mas que nem sempre o podiam ser.

Meses mais tarde, Assunção foi brindada com três irmãos, tão pequeninos, que todos lhes cabiam no colo de uma só vez. Era este o segredo de que a avó Júlia lhe falara. A menina de cabelos de oiro e olhos azuis da cor do mar, que embora não fosse uma princesa de verdade, tinha agora a casa cheia de crianças, como sempre desejara. Mas, dizia-lhe o seu coração que, um dia, tornaria a encontrar os amigos do seu sonho e outras crianças dos países do Atlas, a quem iria ajudar como dos seus irmãos se tratasse.







Este é o primeiro conto da rúbrica "Conto para todos" da autoria de bloguemãedetrês.
Publicado a 15 de agosto, dia da Padroeira de Alvito - Nossa Senhora da Assunção.




#1 
Rúbrica "Conto para todos"
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Comentários

  1. Gosto tanto de te ler!!! E durante este conto dei por mim a sorrir, porque reconheci ligações, metáforas e me revi em tempos passados 😊😊
    Fico à espera de mais...
    😘

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  2. Muitos parabéns!
    Espero que esta seja a primeira de muitas partilhas!
    Gosto da tua escrita! Esperamos pela próxima!

    Beijinhos

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    1. Obrigada! À espera de tempo e de inspiração... Beijinho

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