com M grande - Maria Amélia




Nasceu a 23 de agosto, passava o ano de 1933, numa aldeia do Alto-Alentejo. A terceira de oito. Eram muitos como era habitual ser; oito bocas que engrossavam as fileiras da fome, da miséria e do nada.
Filha de mãe austera e de um pai bonacheirão, submisso à altivez da matriarca, por quem todos tinham um respeito imenso.
Aos seis meses ficara literalmente marcada para a vida; um resvalo da caixa de madeira onde dormia, empurrou-a para o lume de chão deixando-lhe na face e na cabeça, a marca visível de uma vida que se começava a vislumbrar penosa.
Cedo se fez à dureza do campo que a fazia crescer à força, ao calor, à chuva, ao frio, de sol a sol, sem férias nem dias de descanso. Eram muitas as bocas a quem dar de comer e o pouco era dividido por muitos.
Era ainda solteira quando engravidou pela primeira vez, do único homem da sua vida, que a encheu de filhos e de maus-tratos. O amor é mesmo cego e esta jovem era a prova viva disso mesmo. Apesar de tudo, sentia-se menor num celibato que aos olhos de outros também não era bem visto, para quem já tinha parido uma vez. Foi então que, numa vontade quase solitária mudou de estado civil, mantendo-se a vida pérfida e lastimosa. Amar por dois era a sua missão, o seu destino, que assumia como um mal menor. As traições das quais surgiam outros descendentes continuavam e a tirania também. Ficaram traumas, o inevitável divórcio e a vergonha de o assumir, mas sobretudo de perder o seu homem não sabendo ela, que agora estaria a alcançar outro amor, o próprio. Ou não...
Foi abandonada uma vez mais, mas acolhida por quem não poderia deixar de ser. Separada, com quatro filhos viveu cerca de uma década com os pais. A humildade e o pouco continuavam  a reinar mas era do seu suor e das suas lágrimas que saía o sustento das suas raparigas e rapazes, a quem nunca deixou faltar o essencial. Consequentemente também eles, cedo se fizeram à vida para ajudar ao sustento da casa. Assim era naquela altura; aos 8, 9, aos 10 já se ia tarde. Servia-se em casas senhoriais, guardavam-se rebanhos ou varas e comia-se o pão que o diabo amassou.
Não era tudo. Mal sabia, que anos mais tarde viria a passar pelo maior desgosto da sua vida. Por entre desaparecimentos prematuros de irmãos, conheceu o significado da dor lancinante que a morte incompreensível de um filho, na flor da idade, provoca a uma mãe. Secaram-se-lhe as lágrimas. Até hoje a mágoa e a saudade não a deixaram um dia só, a juntar às tantas tormentas que a vida já lhe havia reservado.
Poucos anos depois trava uma batalha contra o cancro - um carcinoma que a levou a tratamentos intensíssimos  no IPO de Lisboa e que a afastaram da sua terra de onde raras vezes havia saído. Não ficou sozinha. Teve uma espécie de anjo de todas as horas, uma cunhada, que a acompanhou noutro momento difícil. Mais um.
A fé ajudou-a e a família, aquela que construiu como uma verdadeira mulher de armas, também não a deixou, retribuindo-lhe assim, a vida de sacrifício em prol dos outros.
Talvez a sua personalidade seja fruto da vida amargurada que teve. Foi mal-amada, maltratada e subjugada à ira e ao desrespeito de alguém por quem ainda hoje sente um carinho extremo. Inevitavelmente sorri, sempre que se fala nele. Em todos estes anos jamais a ouvi queixar-se ou denegrir aquele que a tratou de forma tão vil. Nunca.
Hoje, no dia do seu aniversário confessava-me o encontro com o seu amor de sempre, proporcionado pelo filho. Relatava-o com um brilho nos olhos, e terminando resignada, em jeito de síntese, dizia-me que aquela queda no lume parecia ter-lhe ditado o sofrimento de uma vida ao longo destes 85 anos. Foi uma conversa bonita e tão comovente, de uma lucidez tal que lhe permitiu fazer o balanço de décadas, que infelizmente pouco jogaram a seu favor. Não lhe guarda ressentimentos, o que aos olhos de muitos pode não fazer sentido, mas para ela faz. E isto é verdadeiramente genuíno. Teve em si o amor a alimentar-lhe a vida e a dar-lhe alento quando julgava não poder mais. 

Chama-se Maria Amélia, 4 filhos, 12 netos, 7 bisnetos. Uma vida vivida na esperança de alcançar o amor. A minha avó.

Se uma música pudesse definir esta vida, seria com certeza “Quem me dera” .
Cada verso encaixa-lhe na perfeição.



Esta é a primeira publicação da rúbrica que acabo de criar no bloguemãedetrês intitulada “com M grande”.
Não terá periodicidade definida mas será sempre sobre mulheres/ mães que de alguma forma, se demarcam das demais. Por esta razão, tinha inevitavelmente de começar pela minha avó.


Comentários

  1. Eva deixaste-me com lágrimas nos olhos, ao ler o texto que escreveste sobre a tua avó, descreves de uma maneira tal que eu apesar de conhecer algumas coisas sobre essa mulher tão corajosa, fiquei impressionada e apesar de a conhecer pessoalmente e porque sempre lhe dei muito valor, pelo que passou na vida, tenho muito carinho por ela e fico muito feliz por ela ter uma familia que tanto a ama que Deus lhe dê mais uns anos bons, junto de todos os que ela ama, beijinhos com carinho para ti e especialmente para a avó AMÉLIA

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